quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

pingue-pingue


(Estarei morta?
Como um velho boneco
com a corda partida,
um dia irei da vida
numa caixa comprida).
Mas se estou morta
deveria calar-se
o pingo da torneira,
ou terei de o ouvir
a morte inteira?
(Será isto o inferno,
uma torneira,
pingue-pingue,
a morte inteira?)

Fernanda de Castro

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Não queiras a piedade de ninguém

"Não queiras a piedade de ninguém.
Faze do teu orgulho uma couraça.
A piedade é uma forma de desdém.
Nunca peças esmolas a quem passa.

 Mostra, em silêncio, que tens nervo, raça,
e espera. Atrás do tempo, tempo vem.
 E se a ventura for rebelde ou escassa,
que seja o orgulho o teu supremo bem."

Fernanda de Castro

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

«O Ás dos Caçadores» por Fernanda de Castro


Ilustração de Sarah Affonso

"Uma sala. Móveis simples. Um piano. Cadeiras. Quando sobe o pano o Caçador está sentado numa poltrona e, à sua volta, agrupam-se as Meninas. O invejoso escuta com  um ar incrédulo. As Meninas ouvem, de boca aberta, as proezas do Caçador. (...) "

Fernanda de Castro
Boletim Cultural (Fundação Calouste Gulbenkian)
VII Série, Junho de 1992, disponível aqui.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Rosetas, flores, cetim verde, ponto-cruz...

"Então, de repente, compreendi que é isso mesmo que eu quero: recriar à minha volta uma atmosfera «que já não se usa». Por isso, as minhas rosetas de croché, as flores de seda ou de cambraia que aprendi a fazer com a minha bisavó de quase noventa anos, quando eu tinha pouco mais de dez; por isso, os saquinhos de alfazema nas gavetas e as castanhas-da-índia nas algibeiras dos casacos, por causa das traças; por isso as minhas cadeiras Luís XVI com fundos e costas de cetim verde, bordados por mim a ponto-de-cruz; por isso, os boiões de porcelana antiga cheios de raminhos de lúcia-lima e de pétalas secas de rosas vermelhas que, quando os boiões se destapam, espalham um delicioso perfume na sala; por isso, finalmente, o chá de limão e as papas de linhaça, remédios que fazem talvez bem ao corpo, mas que fazem com certeza bem à alma porque exigem cuidados, paciência, atenção, remédios caseiros que a falta de tempo, o grande papão, vai inexoravelmente fazendo cair em desuso."

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória I

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Fernando Assis Pacheco sobre Fernanda de Castro


"Imobilizada pela doença, Fernanda de Castro cultiva em alto grau a arte de conviver, desfiando histórias atrás de histórias que são uma imagem vivida do século. O pai ensinou-lhe a fazer nós de marinheiro, mas a Maria Rapaz, desengonçada e senhora do seu nariz, acabou por casar (com António Ferro que teve nas mãos o Marketing do antigo regime) e correr o mundo, fulminando legiões de admiradores - Pessoa entre eles, ao que se diz - com uns olhos belíssimos e uma verve inigualável. (...)"

Suplemento de "O Jornal", nº. 683
(1988)

sábado, 12 de maio de 2012

"15 Portugueses Ilustres" de Paulo Marques


Uma viagem ao longo de todo o século XX que aborda a vida de quinze grandes personalidades portuguesas e as suas importantes contribuições em áreas como a Literatura, a Educação, a Cultura, a Arte e a Política.

"15 Portugueses Ilustres" de Paulo Marques: Amália Rodrigues, Miguel Torga, Maria Lamas, Sidónio Pais, Fernanda de Castro, António Botto, D. Amélia de Orleães, Francisco Sá Carneiro, Maria de Lourdes Pintasilgo, Tomás Alcaide, Elina Guimarães, José Régio, Maria Matos, Irene Lisboa e Álvaro Cunhal.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A Vida Maravilhosa das Plantas


Fernanda de Castro publica A Vida Maravilhosa das Plantas em 1964, com capa e ilustrações de Inês Guerreiro, numa pequena edição de autor. O rigor científico deste estudo é acompanhado pela sensibilidade poética com que a escritora descreve e analisa as plantas, as árvores, as folhas, os frutos, as sementes, os caules e até os insectos, com o ser-humano no horizonte. O maravilhoso mundo dos seres vivos que acompanha toda a sua produção poética, surge aqui em forma de ensaio revelando o profundo conhecimento de Fernanda de Castro sobre o reino vegetal, mundo que intuía como ninguém:

“(…) À primeira vista, a imobilidade da Planta parece dever condenar ao fracasso todos os seus esforços, todas as suas tentativas, mas a sua imaginação é fértil e são inúmeros os estratagemas de que se serve para alcançar o seu quinhão de luz: plantas que nascem rasteiras elevam-se à força de gavinhas, de acúleos, de raízes adventícias, de espinhos e até de pêlos, como o Lúpulo que (…) consegue rodar sobre si mesmo, dando uma volta completa ao caule.”

Fernanda de Castro
Em A Vida Maravilhosa das Plantas, Edição de Autor (1964)

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Memórias de José Almeida Araújo


"Desde o meu regresso da Suécia que Jean Cocteau e Marcel Pagnol, dois futuros "imortais" - designação respeitosa não isenta de ironia dispensada aos membros da Académie Française - me tinham oferecido conselho. (...) São encontros que fiquei a dever às recomendações amigas de António Ferro e Fernanda de Castro. (...) Fui sempre bem recebido no grande apartamento da Calçada dos Caetanos, hoje rua João Pereira da Rosa. Infelizmente, nem sempre foram reconhecidos por tantos que tanto ajudaram. A ingratidão, a par com a ausência de dignidade e coragem, moral e física, sempre foram e continuam a ser postura dos que, há mais de trinta anos, apelidei no semanário Expresso de "amnésicos de cravo ao peito".

José Almeida Araújo
A vida aos pedaços - Memórias
Edição de Autor (2012), pp. 57-59.

Ó Árvore


I
Ó arvore, alguém pensou
Na tua imensa alegria
Quando enfim rompeste a crosta
E alcançaste a luz do dia?

II
Manhã cedo, na mata,
respira-se mais fundo.
Tudo é puro, auroral, duma inocência
de princípio do mundo.
De ti mesma cativa,
sem pressas, folha a folha, vais crescendo
com uma falsa indolência

Árvore, como invejo
a tua paciência!

III
Lentamente, cresceste,
eras frágil, pequena,
como um pé de violeta.
Vergavas sob o peso duma abelha
ou duma borboleta.

Depois, cresceste
a muito custo,
o pé de violeta
transformou-se em arbusto.

Então, ano após ano,
o arbusto fez-se árvore, tão forte
que nem o vento lhe faz dano.

Agora, desse tempo, nada resta:
o é de violeta
é um deus da floresta.

IV
Árvore, alguém te perguntou:
És feliz, infeliz,
Imóvel presa ao chão
Pela raiz?

V
Árvore,
eu sinto em mim o teu sofrimento,
sempre que o vento, à doida, à toa,
te fere, te magoa,
eu tenho calafrios, pesadelos,
como se o vento em vez de sacudir-te
e de arrancar-te as folhas,
me arrancasse os cabelos.

VI
Quando à noite abro as janelas
não é só por ter calor
ou para ver as estrelas:
é mais para respirar
e para dormir melhor,
porque sei que as tuas folhas,
exalam de noite o ar
que me alivia a fadiga
e que me lava os pulmões,
ó árvore minha amiga.

VII
Pássaros, vossa vida que seria
sem o doce aconchego das ramagens
onde escondeis as asas e as plumagens,
quando anoitece, à espera de outro dia?

Quando se cala a vossa melodia
e regressais, exaustos de viagens,
de voos sem destino, de miragens,
de amorosa, secreta fantasia,

voltais à paz do ninho, às vossas casas
onde cabem, exactas, vossas asas
e os filhos que de vós hão-de nascer.

Ó árvores da mata, da floresta,
o chilreio das aves é uma festa
que só a vida pode agradecer.

VIII
Árvore,
alguém ouviu o teu lamento
quando o vento,
esse cavalo doido à desfilada,
deixa a sua pégada
em cada flor, cada rebento,
cada frágil ramada?

IX
Se acaso estás cansado,
se uma pena, um cuidado,
uma onda de tédio
te dão a sensação
de que tudo na vida é sem remédio,
vai procurar a sombra duma árvore,
olha as folhas, os ramos, os botões,
enche de ar os pulmões
e saberás, então,
que essa árvore estava à tua espera,
só para te dizer:
"Queiras ou não,
Amigo, é Primavera!"

X
E tudo o mais que as árvores nos dão
na dádiva telúrica e total
duma vida que à vida se destina,
desde a flor e dos frutos à resina,
desde a resina à casca estaladiça
da cortiça,
da cortiça arrancada
à árvore passiva,
à árvore submissa,
deixando-a sangrar, em carne viva.

E tudo o mais que as árvores nos dão:
frutos de inverno, frutos de verão,
ó árvores das matas e das quintas,
para as bocas sedentas,
para as bocas famintas.

E onde vamos buscar as nossas brasas,
o lume das lareiras, o calor,
e as madeiras das casas,
das vigas ao sobrado?
Acaso não será à tua dor
à dor do tronco retalhado
a golpes de machado?

XI
E não esqueçam, por favor,
essas árvores de flor,
que são só para enfeitas,
com seu jeito, sua graça,
cada rua, cada praça;
que são só para alegrar
as vidas sem horizontes,
como se fossem as fontes,
duma tímida esperança;
que são só para enxugar
o choro duma criança
ou lágrimas de mulher,
duma pessoa qualquer;
que são só para evitar
um gesto desesperado
na Cidade indiferente,
quando sofre, lado a lado,
muita gente, tanta gente:
que são só para abrigar,
quando, à sombra dos seus ramos,
se trocam beijos de amor;
que só servem para pôr
alegria na tristeza
e pouco mais... para dar
uma gota de beleza
a quem por elas passar...

essas árvores de flor
que são só para enfeitar.

XII
Se vires uma árvore,
e se fores comigo,
faz, Irmão, o que eu faço:
pára e dá-lhe um abraço,
não tens melhor amigo.

Fernanda de Castro
em E eu saudosa, saudosa...
(1973)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Quem pudera, Cecília!


Tenho fome de campo e de verdura,
De terra bem lavrada,
E sede, muita sede de água pura.


Quero pegar no cabo de uma enxada,
Quero cheirar os troncos e as raízes,
Pisar, descalça, a terra ainda molhada,
Ver, nas noites, o rasto das perdizes.


Já Cecília Meireles o dizia,
Com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”
E ria, ria,
Rasgando as mãos nas silvas,
Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.


Tinhas razão, Cecília.
Em Portugal, as estações são festas,
São festas de família,
Enfiadas, colares de alegrias;
Na Primavera as flores;
Os frutos no Verão, e as romarias;
No Outono o vinho novo e o ritual
Profano das vindimas;
No Inverno,
A mística alegria do Natal,
As portas bem fechadas,
A lenha a crepitar
E as rabanadas.


Quem pudera, Cecília, quem pudera,
Mandar-te para lá, para onde estás,
Um raminho da nossa Primavera.

Fernanda de Castro

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Gabriela Mistral


"Não há na poesia francesa de hoje nenhuma poetisa com o seu vigor."



Gabriela Mistral
(Prémio Nobel da Literatura, 1945) 
sobre Fernanda de Castro

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Rua João Pereira da Rosa, n.º 6 (1958)


Descerramento da lápide de António Ferro no prédio onde viveu com a sua mulher, Fernanda de Castro.
11 Nov. 1958. Fotografia de Armando Serôdio. (Lisboa, Arq. Fotográfico da CML, A27768)

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No mesmo prédio também viveram: Oliveira Martins e sua mulher; Ramalho Ortigão; José Gomes Ferreira e sua mulher; Bernardo Marques e Ofélia Marques.

Esquecido, censurado, ou achado detestável


"Com uma carta amabilíssima, recebo um convite para me deslocar à inauguração de uma exposição sob o signo de Portugal Século XX, 50 Rostos para uma Identidade.
Pregam-me nas ventas a franginha da Beatriz Costa, afamada vedeta por chupar no burrié e outras marotices que fizeram época. Não fui estranho à iniciativa. Tiveram a gentileza de me chamar para um texto sobre Almada Negreiros, onde e não por acaso meti o António Ferro e as duas extraordinárias Senhoras que, ao lado de um e de outro, Sarah Afonso e Fernanda de Castro, decerto muito contribuíram para a grandeza da obra deles. Ora, e durante semanas temi tal disparate, o nome de António Ferro foi esquecido. Ou censurado. Ou achado detestável. Entre Dezembro de 1995 e Fevereiro de 1997, semana a semana, fui-me perguntando: será que vão esquecer este? aquele?
Mais escandalosa que a de Ferro e ainda mais inexplicável, é a ausência de Duarte Pacheco, tanto o Ministro das Obras Públicas como o Presidente do município lisboeta. Pensem o que quiserem, não me reconheço nessa pretensa identidade. E se os tais 50 rostos, nas espantadas serigráficas trombas que o Leonel Moura arranjou, eram escassos, porque não 59, 70? "

Luiz Pacheco
"Um homem dividido", em PRAZO DE VALIDADE, Contraponto, 1998.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Fernanda de Castro e Florbela Espanca

Florbela Espanca

"Hoje, numa reunião de amigos, falou-se muito de Florbela Espanca a propósito das suas obras póstumas, e, de repente, sem saber como, vi, reparei que era o alvo de todas as atenções. Porquê? Porque se lembraram de uma coisa que lhes tinha contado há tempos, que impressionou toda a gente e que me atormentou a mim vários anos.
Disse-me alguém da minha confiança, creio que a Teresa Leitão de Barros, que a Florbela, nas vésperas da sua morte, passara o dia à minha procura: telefonou duas vezes para minha casa, e falou para a Bertrand e para a Portugália, onde eu ia muitas vezes à tarde. Por um acaso triste, nunca me encontrou, e, em toda a parte, o recado que deixava era o mesmo:
Digam à Fernanda de Castro que tenho a maior urgência em falar-lhe.
Quando finalmente recebi o recado, fiquei perplexa, porque as nossas relações eram meramente sociais, não havendo entre nós a menor intimidade. Calculem pois como eu fiquei ao ter, dois dias mais tarde, a notícia da sua morte. Angustiada, conversei com a Teresa a esse respeito, e ela, que a conhecia muito melhor do que eu, também estava extremamente admirada, pois não fazia a menor ideia do que a Florbela pretendia de mim. É certo que tínhamos estado juntas uma semana antes, num «chá» em casa da Maria Amélia Teixeira, directora do Portugal Feminino; a nossa conversa tinha sido amigável, mas completamente banal. O José Leitão de Barros, posto ao corrente pela irmã, disse com o seu ar despachado e um pouco trocista:
– Não sabem do que se trata? Pois sei eu! Ciumeira... ciumeira por causa do Américo Durão. Ela gosta dele e está convencida de que ele não lhe liga porque de quem ele gosta é da Fernanda.
Caí das nuvens. É certo que, como já disse, o Américo me tinha um dia escrito uma carta com estas dizeres: «Quer casar comigo?» Ao que eu respondi, não menos laconicamente: «A que propósito?...»
Depois disto, juro que nunca mais me disse uma palavra a este respeito, que nada na sua atitude poderia levar-me a pensar que as nossas relações não fossem perfeitamente amigáveis, poderia até dizer, fraternais. Imaginem pois o meu espanto quando há dias me disseram que, em certo livro, que não li, a Florbela dizia, numa carta dirigida ao Américo Durão, qualquer coisa neste género: «Eu bem sei que você não gosta de mim porque gosta da F. C. Além disso, também me disseram que gosta muito mais dos versos dela do que dos meus!»
Continuei perplexa, mas, desgraçadamente, a Florbela já tinha morrido e só em pensamento, pensamento muito forte, pude desfazer o engano, dizer-lhe, sem palavras, quanto me penalizava o terrível equívoco. (...)
A alma de Florbela, torturada, insatisfeita, persegue-me como o perfume de certas flores murchas, esquecidas entre as folhas dum livro.
Mal a conheci em vida e agora, depois de morta, Florbela anda comigo, acompanha-me, conta-me do outro mundo uma longa história triste que eu procuro reconstituir palavra a palavra, verso a verso, ia quase a dizer pétala a pétala.
Porque morreu Florbela? Porque nasceu triste? Porque não soube ou não pôde contentar-se com a vida? Onde a raiz da sua estranha angústia?
(...) Suponho que obedeceu à tentação do infinito. Florbela morreu porque não soube pôr de acordo o seu corpo, o seu espírito e a sua alma. Florbela era feita de três magníficas peças que nunca acertaram. Chamava-se Florbela – e tinha versos geniais; nasceu e morreu na província – e nenhuma fronteira detinha as suas asas; tinha uns olhos castanhos banais – e um olhar estranho, extremamente doloroso; não soube viver sem quebrar algumas correntes, algemas, preconceitos, mas não teve coragem bastante para os quebrar a todos.
Parece-me adivinhá-la... De quando em quando um assomo de vontade, um desejo de paz, uma ânsia de calma, de renúncia: não mais desejos, não mais ambições, não mais sonhos impossíveis... A vida normalizada, banalizada, horas certas para comer, para dormir, para sonhar, para fazer versos, para ser feliz, para ser infeliz..."

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória II

segunda-feira, 26 de março de 2012

Distância

Distância

Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.


Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d'antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.


Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d'esta sala...
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!


Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois...
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.


Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!


Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!...
Paira nas velhas ruínas do convento


Que além se avista,
A alma melancólica d'um monge
Que a vida arremessou àquela crista...


Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!...

Fernanda de Castro

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Velha

A Velha tinha uma saia
de remendos de vida remendada
e um lenço branco de cabelos brancos
na cabeça cansada.

A Velha tinha uma cara
de fomes e de penas amassada,
e um corpo todo aos nós de árvore seca,
de planta mal regada.

A Velha tinha um olhar
de estrela morta, de luz apagada,
e duas mãos de terra por lavrar,
de cortiça queimada.

A Velha tinha uma voz
de fio de água, de fonte calada,
e uma boca sem dentes e sem lábios,
de estátua mutilada.

A Velha tinha uma alma
de farrapos de vida alinhavada.
A Velha tinha uma alma
e não tinha mais nada.


Fernanda de Castro

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Ada de Castro canta "Bateu-me à porta a tristeza" de Fernanda de Castro

Tema: Bateu-me à porta a tristeza
Intérprete: Ada de Castro
Autoria: Fernanda de Castro, Elvira de Freitas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Fernanda de Castro por Noemia Mourão


Ilustração para a Capa do Livro “Alegria”, de Fernanda de Castro.*
Descrição: nanquim s/ papel, com indicação de autoria de Noêmia Mourão parte inf., dat. 16/04/1956 e com esboço de figura no verso
38 x 28 cm

Encontrado aqui.
-------------------
*Fernanda de Castro não chegaria a publicar nenhuma obra com o título "Alegria", conhece-se sim, um poema, com o mesmo nome, publicado no livro D'Aquém e D'Além Alma de 1935.

Fernanda de Castro por Tarsila do Amaral

"Retrato de Fernanda de Castro", de 1922 (óleo sobre tela)
Autor: Tarsila do Amaral

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sessão de poesia dedicada a Fernanda de Castro



No passado dia 4 de Fevereiro, realizou-se no Centro Recreativo de Mafamude, uma sessão de poesia dedicada a Fernanda de Castro. O tributo, realizado no âmbito das comemorações do centenário deste Centro, contou com a participação musical de Marta Sofia Carvalho, acompanhada à viola por José António Gonçalves. A apresentação de Fernanda de Castro esteve a cargo de Paulo Rodrigues, presidente da direcção do Centro Recreativo de Mafamude, tendo depois sido lidos vários poemas por Maria de Lourdes dos Anjos, Maria Leonor Reis e outros associados presentes na sessão.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Fulgurante e persistente

"Um outro nome que merece convocação, pela importante acção alardeada nessa vertiginosa década de vinte do século anterior e não só, é a figura também esquecidíssima de Fernanda de Castro (1900-1994). Olho só para essa década e vejo nela tanto ter trabalhado e nela ter cumprido o seu período formativo este fulgurante e persistente caso de mulher, que, "de molde mais moderno", como o afirma Gaspar Simões, publica, nesse lapso de dois lustros, obras como os livros de poesia Danças de Roda (1921), Cidade em Flor (1924) e Jardim (1928), com capas de Cottinelli Telmo o primeiro e de Bernardo Marques os dois restantes, saindo ainda nessa década o drama Náufragos (1924-1925?), o livro infantil Varinha de Condão (1924-1925?), em colaboração com Teresa Leitão de Barros, e o romance O Veneno do Sol (1928). Alguma obra se publicou antes e muito mais se viria a publicar depois. (...)"

Martim de Gouveia e Sousa
Leia o texto completo aqui.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Joana Amendoeira interpreta "Um grande amor" de Fernanda de Castro


Um grande amor (Fado margaridas) / [letra] Fernanda de Castro; [música] Miguel Ramos.

"Um grande amor não cabe em nenhum verso,
como a vida não cabe num jardim,
como não cabe Deus no Universo
nem o meu coração dentro de mim.

A noite é mais pequena do que o luar,
e é mais vasto o perfume do que a flor.
É a onda mais alta do que o mar.
Não cabe em nenhum verso um grande amor.

Dizer em verso aquilo que se pensa,
ideia de poeta, ideia louca.
Não é bastante a frase mais extensa,
diz mais o beijo do que diz a boca.

Ninguém deve contar o seu segredo.
Versos de amor, só se os fizer assim:
como os pássaros cantam no arvoredo,
como as flores se beijam no jardim.

Que verso incomparável, infinito,
feito de sol, de misterioso brilho,
poderia dizer o que, num grito,
diz a mulher quando lhe nasce um filho?

E quando sobre nós desce a tristeza,
como desce a penumbra sobre o dia,
uma lágrima triste e sem beleza,
diz mais do que a palavra nua e fria.

Redondilha de amor... Para fazê-la,
desse-me Deus a tinta do luar,
a candeia suspensa de uma estrela
e o tinteiro vastíssimo do mar."

Fernanda de Castro

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Fernanda de Castro, Elena Văcărescu e Mircea Eliade

Elena Văcărescu

"Fernanda de Castro poeta, novelista, dramaturga, esposa del influyente personaje del régimen António Ferro (1895-1956). Esta intelectual conoció a figuras destacadas americanas y europeas en los viajes que realizó con su marido representando a Portugal, y refiere en sus memorias que “sempre [tuvo] muitas ligações sentimentais com a Roménia: em primeiro lugar a grande amizade que sempre tive e tenho por Mircea Eliade, que esteve alguns anos em Lisboa como adido cultural”. Para, a continuación, fotografiar las reuniones que Mircea Eliade hacía en su casa:

Todas as quartas-feiras ele reunia em sua casa um pequeno grupo de amigos entre os quais, se não me engano, José Osório de Oliveira e Rachel Bastos, sua mulher, Luíz Forjaz Trigueiro, José Leitão de Barros, o António e eu. Estas reuniões eram muito agradáveis porque tanto ele como a mulher eram extremamente simpáticos e encantadores anfitriões. Todas as semanas se discutia um assunto diferente, por exemplo, psicologia e parapsicologia, religião, feminismo, ocultismo, astrologia, etc. Todos adoravam estas quartas feiras que só foram interrompidas pela morte brutal de Nina, sua mulher, que ele adorava, e pela sua transferência, quase simultânea,  para outro País (...) 

Fernanda de Castro reúne sus recuerdos. En ellos, para lo que ahora nos interesa, informa que Elena Văcărescu, que estuvo a punto de ser reina de Rumanía, permaneció un corto espacio de tiempo en Portugal durante la primera guerra mundial. (...) Uma vez, estando em Paris, no Scribe, Helena telefonou-me dizendo que tinha a maior urgência em ver-me, porque tinha uma coisa formidável para me contar. Fui vê-la nessa mesma tarde e ela recebeu-me com os seus inúmeros erres há muito meus conhecidos, e com ruidosas exclamações de alegria

–Tu sais, ma petite Fernanda, nous sommes riches, riches! Figurre toi que nous avons du pétrole dans nos terres de Roumanie, des terres que ne valaient pas un sou! On nous a déjà donné un tas d’arrrgent pour nous leur donnions la permission de faire des recherches, des prospections, je n’ai pas bien compris quoi ... mais ça ne fait rien. On est  riche, tu sais. Si tu as besoin d’argent, tu n’as qu’à le dire, nous t’en donneront. (...) 

Pouco tempo durou esta euforia. Afinal havia petróleo, sim, mas em tão pequena quantidade que não valia a pena arriscar dinheiro na sua exploração. Isto porém não as [a ella y a su hermana]  afectou nada. Quando as tornei a ver continuavam a viver, alegres e modestamente como sempre, uma pequena vida digna e mediana, tendo esquecido completamente a aventura do petróleo e a sua efémera grandeza. (...)

Mª Victoria Navas Sánchez-Élez
Revista de Filología Románica  2011, vol. 28, 185-190