segunda-feira, 30 de abril de 2012

Quem pudera, Cecília!


Tenho fome de campo e de verdura,
De terra bem lavrada,
E sede, muita sede de água pura.


Quero pegar no cabo de uma enxada,
Quero cheirar os troncos e as raízes,
Pisar, descalça, a terra ainda molhada,
Ver, nas noites, o rasto das perdizes.


Já Cecília Meireles o dizia,
Com imenso carinho:
“Portugal não tem campo, tem campinho.”
E ria, ria,
Rasgando as mãos nas silvas,
Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas.


Tinhas razão, Cecília.
Em Portugal, as estações são festas,
São festas de família,
Enfiadas, colares de alegrias;
Na Primavera as flores;
Os frutos no Verão, e as romarias;
No Outono o vinho novo e o ritual
Profano das vindimas;
No Inverno,
A mística alegria do Natal,
As portas bem fechadas,
A lenha a crepitar
E as rabanadas.


Quem pudera, Cecília, quem pudera,
Mandar-te para lá, para onde estás,
Um raminho da nossa Primavera.

Fernanda de Castro

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Gabriela Mistral


"Não há na poesia francesa de hoje nenhuma poetisa com o seu vigor."



Gabriela Mistral
(Prémio Nobel da Literatura, 1945) 
sobre Fernanda de Castro

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Rua João Pereira da Rosa, n.º 6 (1958)


Descerramento da lápide de António Ferro no prédio onde viveu com a sua mulher, Fernanda de Castro.
11 Nov. 1958. Fotografia de Armando Serôdio. (Lisboa, Arq. Fotográfico da CML, A27768)

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No mesmo prédio também viveram: Oliveira Martins e sua mulher; Ramalho Ortigão; José Gomes Ferreira e sua mulher; Bernardo Marques e Ofélia Marques.

Esquecido, censurado, ou achado detestável


"Com uma carta amabilíssima, recebo um convite para me deslocar à inauguração de uma exposição sob o signo de Portugal Século XX, 50 Rostos para uma Identidade.
Pregam-me nas ventas a franginha da Beatriz Costa, afamada vedeta por chupar no burrié e outras marotices que fizeram época. Não fui estranho à iniciativa. Tiveram a gentileza de me chamar para um texto sobre Almada Negreiros, onde e não por acaso meti o António Ferro e as duas extraordinárias Senhoras que, ao lado de um e de outro, Sarah Afonso e Fernanda de Castro, decerto muito contribuíram para a grandeza da obra deles. Ora, e durante semanas temi tal disparate, o nome de António Ferro foi esquecido. Ou censurado. Ou achado detestável. Entre Dezembro de 1995 e Fevereiro de 1997, semana a semana, fui-me perguntando: será que vão esquecer este? aquele?
Mais escandalosa que a de Ferro e ainda mais inexplicável, é a ausência de Duarte Pacheco, tanto o Ministro das Obras Públicas como o Presidente do município lisboeta. Pensem o que quiserem, não me reconheço nessa pretensa identidade. E se os tais 50 rostos, nas espantadas serigráficas trombas que o Leonel Moura arranjou, eram escassos, porque não 59, 70? "

Luiz Pacheco
"Um homem dividido", em PRAZO DE VALIDADE, Contraponto, 1998.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Fernanda de Castro e Florbela Espanca

Florbela Espanca

"Hoje, numa reunião de amigos, falou-se muito de Florbela Espanca a propósito das suas obras póstumas, e, de repente, sem saber como, vi, reparei que era o alvo de todas as atenções. Porquê? Porque se lembraram de uma coisa que lhes tinha contado há tempos, que impressionou toda a gente e que me atormentou a mim vários anos.
Disse-me alguém da minha confiança, creio que a Teresa Leitão de Barros, que a Florbela, nas vésperas da sua morte, passara o dia à minha procura: telefonou duas vezes para minha casa, e falou para a Bertrand e para a Portugália, onde eu ia muitas vezes à tarde. Por um acaso triste, nunca me encontrou, e, em toda a parte, o recado que deixava era o mesmo:
Digam à Fernanda de Castro que tenho a maior urgência em falar-lhe.
Quando finalmente recebi o recado, fiquei perplexa, porque as nossas relações eram meramente sociais, não havendo entre nós a menor intimidade. Calculem pois como eu fiquei ao ter, dois dias mais tarde, a notícia da sua morte. Angustiada, conversei com a Teresa a esse respeito, e ela, que a conhecia muito melhor do que eu, também estava extremamente admirada, pois não fazia a menor ideia do que a Florbela pretendia de mim. É certo que tínhamos estado juntas uma semana antes, num «chá» em casa da Maria Amélia Teixeira, directora do Portugal Feminino; a nossa conversa tinha sido amigável, mas completamente banal. O José Leitão de Barros, posto ao corrente pela irmã, disse com o seu ar despachado e um pouco trocista:
– Não sabem do que se trata? Pois sei eu! Ciumeira... ciumeira por causa do Américo Durão. Ela gosta dele e está convencida de que ele não lhe liga porque de quem ele gosta é da Fernanda.
Caí das nuvens. É certo que, como já disse, o Américo me tinha um dia escrito uma carta com estas dizeres: «Quer casar comigo?» Ao que eu respondi, não menos laconicamente: «A que propósito?...»
Depois disto, juro que nunca mais me disse uma palavra a este respeito, que nada na sua atitude poderia levar-me a pensar que as nossas relações não fossem perfeitamente amigáveis, poderia até dizer, fraternais. Imaginem pois o meu espanto quando há dias me disseram que, em certo livro, que não li, a Florbela dizia, numa carta dirigida ao Américo Durão, qualquer coisa neste género: «Eu bem sei que você não gosta de mim porque gosta da F. C. Além disso, também me disseram que gosta muito mais dos versos dela do que dos meus!»
Continuei perplexa, mas, desgraçadamente, a Florbela já tinha morrido e só em pensamento, pensamento muito forte, pude desfazer o engano, dizer-lhe, sem palavras, quanto me penalizava o terrível equívoco. (...)
A alma de Florbela, torturada, insatisfeita, persegue-me como o perfume de certas flores murchas, esquecidas entre as folhas dum livro.
Mal a conheci em vida e agora, depois de morta, Florbela anda comigo, acompanha-me, conta-me do outro mundo uma longa história triste que eu procuro reconstituir palavra a palavra, verso a verso, ia quase a dizer pétala a pétala.
Porque morreu Florbela? Porque nasceu triste? Porque não soube ou não pôde contentar-se com a vida? Onde a raiz da sua estranha angústia?
(...) Suponho que obedeceu à tentação do infinito. Florbela morreu porque não soube pôr de acordo o seu corpo, o seu espírito e a sua alma. Florbela era feita de três magníficas peças que nunca acertaram. Chamava-se Florbela – e tinha versos geniais; nasceu e morreu na província – e nenhuma fronteira detinha as suas asas; tinha uns olhos castanhos banais – e um olhar estranho, extremamente doloroso; não soube viver sem quebrar algumas correntes, algemas, preconceitos, mas não teve coragem bastante para os quebrar a todos.
Parece-me adivinhá-la... De quando em quando um assomo de vontade, um desejo de paz, uma ânsia de calma, de renúncia: não mais desejos, não mais ambições, não mais sonhos impossíveis... A vida normalizada, banalizada, horas certas para comer, para dormir, para sonhar, para fazer versos, para ser feliz, para ser infeliz..."

Fernanda de Castro
Ao Fim da Memória II